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Insolvências pela voz de Fátima Pereira Mouta

30 Outubro 2012 in Jornal Público

Em entrevista ao "Qualidade&Inovação", a advogada tece considerações à reforma do Código da Insolvência e da Reestruturação de Empresas (CIRE).

Em primeiro lugar, considera que o processo de insolvência é pouco utilizado como um instrumento de recuperação e mais visto como uma solução final?

De facto, só muito excecionalmente o processo de insolvência é utilizado como um instrumento de recuperação. Com efeito, na esmagadora maioria das vezes, o processo termina com a liquidação do património do devedor. Contudo, verifica-se, na prática, um enorme esforço por parte das empresas em reestruturar-se, de modo a poderem cumprir com todas as suas obrigações, manter a atividade e proteger os postos de trabalho. Ainda assim, há uma grande reserva por parte dos credores em aprovar o plano de recuperação da empresa. Na minha opinião, os credores, nomeadamente a banca e outras entidades de crédito, não revelam uma postura aberta à negociação, preferindo frequentemente optar pela liquidação da empresa, não permitindo, assim, a sua recuperação e viabilização. Tal acontece, sobretudo, porque, por regra, essas entidades encontram-se munidas de garantias pessoais concedidas pelos sócios da empresa, que lhes permitem satisfazer o seu crédito, executando os seus patrimónios pessoais. Daí que, na grande maioria das vezes, quando a empresa vai para liquidação, tal acarreta a insolvência pessoal dos sócios.

Quais as principais alterações que constam no novo CIRE, em vigor desde 20 de maio, para a insolvência de empresas? E quais as principais alterações que a Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, trouxe ao nível de insolvência de pessoas singulares?

Quanto às empresas, a nova Lei n.º 16/2012, de 20 de abril veio, de facto, proceder a algumas alterações. Destaca-se a introdução do processo especial de revitalização (PER), no âmbito do Programa Revitalizar, que é um processo que se destina a permitir a recuperação e reestruturação das empresas com dificuldades em cumprir, pontualmente, as suas obrigações, designadamente por falta de liquidez ou por não conseguirem acesso ao crédito. Pretende-se que seja um instrumento alternativo à insolvência, e que proceda a uma verdadeira alteração de paradigma: que promova a recuperação, viabilização e reestruturação das empresas, em detrimento da via da liquidação. Na verdade, o PER chega num contexto muito especial de acentuada crise económica, em que é absolutamente imperioso salvar o tecido empresarial português. Neste contexto, que é transversal a todos os ramos de atividade, as empresas são confrontadas com uma significativa redução do seu volume de negócios, quebra esta que torna impossível ou, pelo menos, muito difícil, o cumprimento pontual das suas despesas correntes e das obrigações perante a banca e demais credores. Quanto às pessoas singulares, o processo especial de revitalização é também admissível. Deste modo, as famílias que se encontrem em dificuldades financeiras, nomeadamente por uma questão de desemprego, divórcio, aumento dos impostos, redução de salários, dificuldades no acesso ao crédito, etc., podem também, de uma forma ágil e eficaz, efetuar uma reestruturação global das suas dívidas, permitindo-lhes manter a sua casa e, ao mesmo tempo, pagar todos os seus créditos com os rendimentos que auferem.

No processo de insolvência de pessoas singulares, qual é o percurso para soluciona os problemas das famílias sobreendividadas?

Para solucionar o sobreendividamento das pessoas singulares existem dois caminhos: a insolvência com apresentação de um plano de pagamentos, ou a insolvência com o pedido de exoneração do passivo restante. Na primeira hipótese, apresenta-se um plano de pagamentos de acordo com os valores que o devedor pode pagar. Este deve ser negociado com os credores, uma vez que o mesmo fica sujeito à sua aprovação e pode, designadamente, prever: alargamento de prazos, perdões de parte do capital da dívida, redução dos juros, constituições de garantias, etc. No fundo, é uma proposta de reestruturação das dívidas do devedor. Na 2.ª hipótese, o devedor apresenta-se à insolvência, pedindo logo na petição inicial a exoneração do passivo restante. Tal figura permite aos devedores, pessoas singulares, a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no processo, ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. Desta forma, o devedor pode obter um autêntico fresh start, com o perdão de todas as suas dívidas que não foram entretanto pagas. O objetivo é dar uma verdadeira segunda oportunidade ao insolvente, concedendo-lhe a possibilidade de recomeçar.

Face à atual conjuntura económico-financeira, o número de processos de insolvência tem aumentado?

Não vou referir números. Contudo, devo salientar que estamos a viver problemas económicos muito sérios, com consequências gravíssimas para muitas famílias e empresas. Neste contexto económico os processos de insolvência, quer de empresas, quer de pessoas singulares, têm aumentado significativamente, sobretudo nos últimos dois anos. Com efeito, o aumento do desemprego, a redução do poder de compra das famílias, as dificuldades acrescidas no acesso ao crédito, a quebra acentuada do investimento, a redução do volume de negócios, que é transversal a todos os ramos de atividade e o aumento dos impostos são alguns fatores determinantes para o aumento acentuado do número de insolvências.

Muitos dos seus colegas consideram que não basta mudar a Lei. As mentalidades têm que mudar, igualmente, para que não se voltem a repetir erros do passado, nomeadamente quando um empresário já levou mais do que uma empresa à falência. Concorda? Esta nova Lei penaliza, de forma mais severa, os empresários reincidentes?

Sim, concordo. Realmente, é necessário que os diversos agentes adotem uma conduta que se baseie na responsabilidade, na boa fé e no cumprimento dos deveres legais. A nova Lei prevê consequências para o devedor, ou para os administradores que tenham criado ou contribuído com os seus atos para a insolvência.

Alguns dos pares consideram que o primeiro Código surgido neste âmbito (Código dos Processos Judiciais de Recuperação das Empresas e de Falência) era muito direcionado para a proteção dos devedores, permitindo alguns mecanismos de fuga. Já o Código de 2004 foi pensado para a proteção dos credores. Qual é a sua opinião?

Concordo com essa interpretação, uma vez que o atual CIRE responsabiliza os administradores das empresas de uma forma mais eficaz, tentando evitar as insolvências fraudulentas ou dolosas. De facto, o código anterior permitia que os administradores praticassem atos prejudiciais aos credores, sem que daí resultasse, na maior parte dos casos, qualquer consequência na sua esfera jurídica. Ao invés, a Lei atual estabelece consequências para o devedor, ou para os seus administradores que tenham criado - ou contribuído - com os seus atos para a insolvência.

A falta de resposta do sistema jurídico é um problema neste setor da Justiça. O que deve mudar para solucionar este problema?

Penso que existem alguns problemas. Na minha perspetiva, é necessário criar mais tribunais de competência especializada de comércio, pois esta matéria requer alguns conhecimentos específicos e formação especializada. Os tribunais de competência genérica abarcam uma grande diversidade de matérias e encontram-se sobrecarregados de processos, não sendo possível, aos Juízes, aprofundar conhecimentos numa área tão específica como a da insolvência. Acresce ainda que os poucos Tribunais de Comércio existentes também se encontram sobrecarregados de processos. A solução passaria pela criação de mais tribunais de comércio juntamente com um reforço na formação especializada aos diversos intervenientes.